terça-feira, 5 de julho de 2011

Santos dos Prazeres

Era uma quarta-feira nublada e quase fria. Diferente dos outros dias ensolarados em que os pontos de ônibus já deviam estar saturados de ouvir sobre o clima. Juro que esperava por um dia que não só as nuvens fossem exóticas, proporcionando desenhos infinitos. Queria um café sem açúcar para edulcorar a mesmice, amargurando o cotidiano e esmagando as horas com o calor que deslizava em minha língua desembocando em meu estômago. A essas tantas de meus pensamentos, ainda estava forçando a catraca que liberou aquele som peculiar de moedas adentrando em um cofre, mergulhando-se junto de tantas outras, dizendo “Socorro, eu serei comida”. Segurei minha mala preta com meu notebook, arrumei a gravata e verifiquei se o sapato estava sujo. Não, estava exatamente como eu havia deixado, a ponto de espelhar os vidros da janela da locomotiva moderna em que eu embarcara. Olhei para frente e vi uma moça de nariz, olhos e boca pequena. O rosto era pequeno e a pele era branca, como a Santa Maria, Nossa Senhora do Desterro, enfim, aquelas santas. Não consegui parar de olhá-la. Aproveitei porque o olhar dela estava direcionado ao nada para fora daquele ônibus cheio de gente, cheias de pensamentos distintos dos meus e contemplei-a. Vezes as sombras a deixavam escura, vezes os tímidos raios a iluminavam acentuando sua pele. Vezes imaginei-me ao lado dela, vezes imaginei-a de pé ao meu lado esquerdo. Ela era linda. Um forte movimento me puxava para a direita. Fui bruscamente interrompido por um brutamontes que me arrastou com sua mochila. Tive de sair dali. Queria olhar a menina santa. Queria perguntar seu nome, se trabalhava, estudava, lia. Impossível competir com todos aqueles homens e mulheres suados das fábricas, aqueles moleques de faculdade e os aposentados que têm seus lugares preferenciais. Então fui comprimindo-me até ao final daquele automóvel que se enchia de vozes, de roupas coloridas, gente estranha, mas tão semelhantes. Os sons prontos de “desculpa”, “posso passar?”, “que ônibus lotado!”, “Caralho, que demora, já tou quinze minutos atrasado porque essa porra não anda”. Logo desliguei meus ouvidos para esse tipo de conversa e acionei os tímpanos para suavizarem a canção sexual que as portas quando abrem e fecham produzem. Pensei na menina santa, e então a imaginei em minha frente naquele corpo masculino que nos embalos do vai-vem alisavam meu peito, desajustando minha gravata.  Um negro, também de olhos, nariz e rosto pequenos, mas os lábios eram fartos de carne. Era lindo. Uma estátua viva de São Benedito.  Ele estava de frente e com tantos outros corpos tapando as janelas restava a olhar ou para baixo, ou para cima ou para frente. Fitei-o enquanto ele em não sei em que pensamento, olhou para os pés e inclinou um mínimo a cabeça, franziu a testa e mexeu os dedos do pé direito. Ali era somente eu e meu pensamento, que era ele. A menina santa deu lugar ao São Benedito, eu pensei e estiquei a ponta dos lábios para a esquerda, com um suspiro levemente alto, então ele finalmente olhou para frente. E olhou para os meus olhos, passando pelas duas pintas que registram minha bochecha direita, parou no nariz, e logo abaixo mirou minha boca. A boca e os olhos meus, a boca e os olhos dele, num movimento constante, interrompidos por alguns “com licença”, “opa, foi mal!”. Nessa confusão tão previsível de todos aqueles corpos,“Foda-se”, eu pensei , e acho que ele pensou o mesmo. Um beijo suado. Salivas sedentas. Mãos nos cabelos. Mãos nas costas. Mãos nas bundas. Suspiros.  Dois corpos fartos de desejo encarcerado e as mais estranhas vozes de raiva, nojo, euforia que aquela abundância de outros corpos fabricou. Descemos no primeiro ponto com as mãos dadas, procuramos um canto daqueles familiares da rua. Cheiro de homens e mulheres, suor, urina, bebida e cigarro e um pixe do “A” dentro de um círculo. Apenas os carros seguindo o fluxo, escondendo nossos gritos de prazer. Apenas as lojas se abrindo no mesmo horário de todos os dias, dissimulando nossos movimentos. Ali estávamos tresloucados sem mais conter os desejos. Ali se exalou o cheiro de dois homens nus deste cotidiano mesquinho, desta vida besta de convicções imbecis. Vestimo-nos e fomos ao trabalho.

"Um corpo estranho"

“A imagem da viagem me serve, na medida em que a ela se agregam idéias de deslocamento, desenraizamento, trânsito. Na pós-modernidade, parece necessário pensar não só em processos mais confusos, difusos e plurais, mas, especialmente, supor que o sujeito que viaja é, ele próprio, dividido, fragmentado e cambiante. É possível pensar que esse sujeito também se lança numa viagem, ao longo de sua vida, na qual o que importa é o andar e não o chegar. Não há um lugar de chegar, não há destino pré-fixado, o que interessa é o movimento e as mudanças que se dão ao longo do trajeto. Como acontece com os personagens de Diegues, o motivo da viagem se altera no meio do caminho; uma vez alcançado, o objetivo deixa de ser importante e se converte em outro; os sujeitos podem até voltar ao ponto de partida, mas são, em alguma medida, ‘outros’ sujeitos, tocados que foram pela viagem. Por certo também há, aqui, formação e transformação, mas num processo que, ao invés de cumulativo e linear, caracteriza-se por constantes desvios e retornos sobre si mesmo, um processo que provoca desarranjos e desajustes, de modo tal que só o movimento é capaz de garantir algum equilíbrio ao viajante.” 

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autência, 2004. p. 13